segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Do silêncio à morte

Acabei de assistir o filme "Trash -  A esperança vem do lixo".
O filme é lindo, mas muito duro. Não tem como falar da vida no Brasil de outra forma. As novelas leblonianas são contos de fada do Manoel Carlos. Não são reais. São produtos comerciais pra vender.
Mas o que mais me impactou no filme foi - mais uma vez - ver como temos propensão à calar quem nos incomoda. No filme uma criança é torturada pela polícia e foi bem difícil pra mim assistir isso. Vários filmes mostram essa faceta humana, a arte de torturar, mas sendo brasileira eu sei que não é só no filme que acontece e é aí que dói.
E pensando sobre isso, tentei fazer uma analogia sobre esse fato - a violência cruel policial - e a dinâmica do viver humano. Nesse ponto consegui entender que é um impulso de todos tentar calar a boca de quem nos incomoda, daquele que quer nos dizer coisas que não queremos ouvir. A diferença entre cada um, nessa sociedade animal, é o nível de poder que se tem para perpetrar e por em prática isso. A polícia tem o poder, o status, as coligações e o arsenal material para torturar e matar. As pessoas "comuns" e desarmadas não chegam a tanto poder, então não alçam mão do poder de tortura física ou eliminação sumária. Mas o desejo de calar é o mesmo.
Quanta gente é calada por aí? Calada por submissão, calada psicologicamente, calada por opressão?
Há poucos dias eu debatia com um adolescente sobre um vídeo machista que ele havia publicado. Eu comentei que o vídeo era errôneo, que a violência que as mulheres sofrem dos homens não é igual à violência que os homens sofrem das mulheres. Sim, eu até deixei passar o fato de ele querer colocar que os homens também apanham das mulheres. Sério que se precisa explicar isso? Sério que isso não está completamente claro e explícito? Respira...suspira...segue. Sei lá porque segui, porque acho que talvez a criatura precise ver um outro lado, porque nunca tinha se colocado no lugar do outro - de outra, no caso - enfim, essa minha veia fatal de achar que o mundo pode ser mudado aos poucos e tal. O debate seguia, eu argumentando muito, afinal nisso sou boa. Quando ele não tinha mais argumentos começou a tentar me silenciar de outra forma, ou seja, agressivamente. Começou a violência dizendo que "por isso não gosto de feministas, são todas chatas". Foi indo nesse nível, enquanto eu respondia com argumentos, até dizer "Ah, vai transar". Teria sido muito melhor e menos perda de tempo se ele tivesse dito isso desde o início. Assim ele teria sido honesto, declarado desde o início o machista nato que é e eu não teria nem me dado ao trabalho. Mas ser machista hoje em dia é muito feio, a moda é ser "direitos iguais", então a pessoa briga até o fim pra mostrar que "é do bem" até chegar em um ponto em que não aguenta, não sabe mais o que dizer mas também não quer reconhecer que está errada e plim: escapa sua verdadeira face.
Mandar uma mulher transar é o supra sumo dos conceitos machistas. Porque no conceito machista o falo é o centro da existência na terra e então receber um pênis seria algo curativo além de dadivoso. Gente, sério que é preciso dizer pros homens que o pênis deles não é o centro da terra? Sério mesmo que precisamos explicar isso? Imagina ter de dizer que mulheres gozam todos os dias SEM NENHUM pênis? Vão morrer na certa. Fulminados.
Ironias pra lá, eu fiquei muito abalada com isso. Não exatamente pelo conteúdo da frase mas pelo desejo dele de me calar me ofendendo. Porque certamente se ele tivesse meios, talvez mandasse também me apagar. Fiquei mal pela violência contida nesse desejo de me fazer mal. Eu sou mulher. Sei bem o que é ser oprimida desde o nascimento. Se arrumar pra sair e ser humilhada na rua com os impropérios que temos que ouvir a todo momento. Sair feliz de casa e voltar nervosa, triste, culpada. Desde criança sendo abusada, violentada, tratada como objeto. Todas nós somos abusadas desde criança e nem sabemos. Já se reconhece o abuso adulto como algo errado e criminoso. Mas e o infantil? Uma menina é constantemente abusada pelos colegas de aula e isso também é agressivo, também é violento e também é assustador. Vivemos numa sociedade onde desde o nascimento os meninos são ensinados a abusar das mulheres e tratá-las como objeto. Assim, quando uma menina põe o pé na escola aos cinco anos já começa a ser oprimida e violentada. Eles abaixam as calças e mostram o pênis, trancam elas no banheiro e passam a mão no seu corpo, correm atrás delas pelo pátio e as agarram como se fossem bois, tentam beijá-las á força, tudo isso debaixo do olhar da professora que diz: "Eles estão só brincando, isso é coisa de guri". Desde sempre aprendemos que "isso é coisa de guri" e quando crescem "homens são assim mesmo", então tentar reclamar por ser tratada como objeto está fora de questão. E quando paramos pra pensar nisso dá uma angústia, uma falta de ar, que até dá vontade de parar de pensar. É mais fácil não ter de olhar pra essas coisas. Até pra nós. Mas acho que já chega, né?
Por que queremos calar o outro?
De onde vem esse desejo insano de exterminar o outro?
Eu não vou me calar.
Nem morta.

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