segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Uma conversa na cozinha

"A medicina de Cuba é a melhor do mundo" dizia ele. Estávamos na cozinha da nossa casa sentados. Era tarde da noite. Não conversávamos muito naquela época. Eu morria de saudades dele. E ele estava ali do lado. Foi um tempo difícil pra mim. A nossa casa era nova, mas ainda não estava pronta. Tínhamos nos mudado há pouco. Ainda tinha cheiro de casa nova. Ainda não tinha jeito de "lar". Não era como nosso chalézinho velho, todo arrumadinho, com nossas memórias, nossas histórias, e a presença de amor do pai por todo canto. Mas ele estava ali, e onde ele estava havia amor. Era uma fase turbulenta, de gritos da minha mãe, de insultos dela e eu, no alto da minha "maturidade" de nove anos, não sabia o que fazer. As pessoas sussurravam coisas sobre "cabeça", "não estar bem". Mas quando ele falava, eu flutuava. Ele tinha bondade na voz, no olhar, nos olhos, nos gestos. Ele tinha bondade até no respirar. Ele continuou me explicando: "Todo mundo tem direito de comer, minha boneca. Todas as crianças tem direito a ter uma casa pra morar. As coisas no mundo não podem ser só de alguns, todos têm direito de ter o necessário pra viver". Eu sempre estava feliz e tranquila ao seu lado. Ele me explicou tanta coisa naquele dia lá na cozinha de casa, mas eu não lembro da metade das coisas. Ou pelo menos, com exceção da primeira frase desse texto, eu não lembro literalmente de nada. No entanto, as ideias e os sentimentos ficaram aqui, como pude constatar anos e anos depois...

Naquela época eu não entendi bem o que ele dizia.  Eram conceitos que eu ainda ia precisar de um pouco mais de tempo pra discorrer sobre, para ter propriedade de debater. O que era C-u-b-a? Eu tinha uma vaga idéia de ouvir na TV que era uma coisa ruim. Mas tudo ficou dentro de mim. Foram sementes plantadas que floresceram e nunca mais morreram. Eu, ao longo dos tempos e por diversas vezes fui sendo levada ao encontro daquela conversa na cozinha...

Quando eu entrei na Psicologia tive de cursar a cadeira de Sociologia. Lá o pai,  lá estava a nossa conversa. Então o pai tava falando de Marx? De comunismo? Ah, meu véinho!

Eu precisava de uma bolsa e "casualmente" entrei num grupo de pesquisa pra ser orientada por um sociólogo e cientista político. Nossa conversa de novo! Nos conceitos de capital social, na importância para o desenvolvimento da sociedade que uns confiem nos outros, na solidariedade, na reciprocidade.
A Psicologia não deu. Passei pelas Ciências Sociais. Alguns diziam que eu era mais socióloga do que Psicóloga mesmo. Mas eu não queria estudar os conceitos e pensamentos do pai, eu queria cuidar dele! Eu queria cuidar de Luizes por aí que são dizimados pela cultura podre do capitalismo, do consumismo, do individualismo. Eu queria cuidar de tantas meninas Cíntias que tem apenas certo tempo, mágico e sagrado, pra estar com seus pais. Eu queria que elas soubessem que não há culpa quando fazemos o melhor que podemos! Eu queria e quero cuidar dessas pessoas pra que elas tenham mais tempo de convivência do que nós tivemos, pai. Por isso sou essa mistura complexa de sociologia, psicologia, saúde mental, saúde pública, terapia ocupacional. Por tudo isso eu vim parar na Terapia Ocupacional. Estamos sempre fadados pela nossa história, nossas escolhas são sempre explicadas pelo nosso passado. Que pena não estares aqui pra continuarmos a conversa, eu agora podendo contribuir mais.

Há algumas semanas atrás chegaram ao país médicos estrangeiros para trabalhar em comunidades pobres e longínquas que os médicos brasileiros não têm interesse de ir. Junto deles estavam médicos cubanos. Haviam também portugueses, argentinos, e outros, mas a elite dominante do nosso país, capitalista por questão de sobrevivência classista e apego ao luxo, se revoltou contra os médicos cubanos. Houveram manifestações medíocres e vergonhosas. Eu senti muita vergonha e tive vontade de pedir desculpas pessoalmente pelas ofensas que sofreram. Sentir vergonha alheia também me fez lembrar de um episódio em que um conhecido me criticou por sentir vergonha pelos outros. Mas, querido, é isso que acontece quando somos um grupo, quando realmente fazemos parte de um coletivo e socialmente nos responsabilizamos uns pelos outros. E eu sou brasileira. Por mais orgulho que tenha de ser gaúcha, o RS ainda é um estado politicamente dentro do território brasileiro. E sim, por me sentir parte deste grupo que é formado pelos habitantes do Brasil, as reações infantis e histéricas das classes elitizadas desse país me fizeram sentir muita vergonha.

E tudo isso só me faz mais uma vez revisitar aquela conversa no sobrado inacabado da rua Jacarandá.
"A medicina de Cuba é a melhor do mundo".

Me espera!


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