segunda-feira, 7 de outubro de 2013

R$ 17,00 ao mês

"A cidadania representa algo mais que a sobrevivência. Ela envolve, entre outras coisas, direito à moradia, alimentação, educação, saúde, renda, segurança e lazer. É papel do Estado garantir à população acesso a todas as necessidades básicas, até porque não se pode esperar que alguém com fome e sem moradia tenha estímulo e disposição para estudar e trabalhar. Porém, cinqüenta milhões de brasileiros estão em estado de indigência. No sertão nordestino, a renda per capita do lavrador não passa de R$ 17,00 mensais"¹.

Estou há vinte minutos olhando pra esse parágrafo. Faz parte de alguns artigos que estou pesquisando para o TCC. Li e reli várias vezes. E fico parada olhando, imóvel, inerte, pensando, tentando compreender porque as pessoas não entendem isso. Por que é tão difícil entender? Por que eu preciso me estressar com gente (gente?) da classe média que se acha muito merecedor de todos os bens que possui? Por que eu tenho que ouvir grosserias de pessoas (pessoas?) que se acham melhores, muito melhores que as outras só porque possuem dinheiro, status, casa (s), carro (s), e que acreditam que moradores de rua não prestam, são nojentos, devem ser exterminados?

Está acontecendo uma discussão grande em Novo Hamburgo. Uma área em um bairro "nobre" (de alto poder aquisitivo, não sei se nobre seria a palavra) da cidade foi vendida e há notícias de que nessa área será construído um condomínio popular. Os moradores do bairro estão revoltadíssimos. Realizaram uma passeata no centro da cidade em repúdio ao condomínio. Tomei conhecimento desse debate por uma rede social, onde uma pessoa postou: 
"Os carros mais tops da cidade desfilando no centro de NH agora... aí uma pessoa me grita de dentro de um dos carros em meio aos buzinaços... "NÃO QUERO FAROFEIROS NO MEU BAIRRO!" ... respeito‪#‎CADAUMCOMSUALUTA".
As pessoas logo começaram a comentar a postagem e os comentários foram gradualmente tomando um tom cada vez mais hostil e agressivo.
"...nossas praças estão habitadas por vândalos e sem teto". 
"NÃO É CRIME COMPRAR O QUE QUISER COM O SEU DINHEIRO. ENTÃO, QUEM TEM UM BOM CARO NÃO PODE SE MANIFESTAR????????". 
"Essas pessoas provalvemente sao os bandidos de hoje ou de amanha, e nao venha me falar que falta oportunidade, pq pobre o que mais gosta de fazer eh nao fazer nada, e ficar recebendo bolsa tudo do governo, se oferece emprego ninguem vai querer. Eu não moro nos bairros em questao, e apoio totalmente o manifesto".
Nesse momento eu comentei também e questionei se os "sem-teto" não eram pessoas que também tinham direito de frequentar as praças do município, por que eles não teriam esse direito, por que "as pessoas" do bairro não podiam dividir a praça com os "sem-teto" e por que pessoas da "classe popular" não poderiam morar no referido bairro. O nível baixou ainda mais:
"...um pombal desses vai trazer inúmeros problemas para o bairro, vai dobrar a populaçao do bairro se tu não sabe sua anta, com isso o aumento do trânsito, violência, etc. E tu acha que nossos políticos vão investir em melhorias na região por causa desse pombal de farofeiros e POBRES? Não, portanto antes de tu abrir essas tua boca fedendo a merda, te informa sobre a história do bairro. Querem fazer pombal, prédio de pobre, temos Canudos, Santo Afonso, bairros onde essa merda teria o público alvo certo".  
"...nao há como discutir com pessoas com um intelecto desfavorecido, este povo tem o dom do coitadismo, e pena de si, nada pensam em objetivos, metas alcançadas, e assim continua essa politica de assistencialismo".

Eu fiquei muito chocada com a reação das pessoas. Não tire o brinquedo de uma criança. Não ameace o luxo e o conforto de quem sempre teve tudo muito fácil. O desespero toma conta. E falo que tiveram tudo muito fácil porque é assim que acontece mesmo. Já nascem em uma família privilegiada, que já possui uma fatia enorme da distribuição de renda, têm melhores oportunidades e o ciclo se perpetua. A distribuição de renda é desigual, então se alguém está ganhando bem, mesmo que trabalhe para isso, alguém em algum lugar está ganhando muito mal, mesmo que trabalhe para isso. Ou seja, a cota que tu recebes a mais é de alguém que também trabalha e recebe a menos. De outra forma: se alguém ganha pouco ou quase nada é porque alguém está ficando com a sua parte do bolo.

Então, não me venha com o argumento de que "trabalhas pra conseguir o que tens" porque na verdade tu até podes trabalhar, mas o teu trabalho inclui também explorar outra pessoa, mesmo que tu não saibas disso, mesmo que não conheça a pessoa, mesmo que ela esteja do outro lado do país. É assim que funciona a economia no mundo capitalista. E para não ter problemas de consciência ou de moral, como vimos nos comentários, a elite alega que "pobre não gosta de trabalhar". Eu queria ver essas mesmas pessoas que estão chamando de merda os outros se eles trabalhariam por R$ 17,00 ao mês. Na verdade, pobre é que gosta de trabalhar. Porque trabalhar pra manter o conforto, o luxo, pagar o cabeleireiro, a manicure, o carro novo, a casa nova, o apartamento na praia, isso é muito fácil. Difícil é trabalhar, desgastar o corpo inteiro, sugar os músculos do corpo e ainda assim no fim das contas e do mês, não ter o que comer.



Eu fico paralisada com essas coisas. Outra postagem em rede social dias depois, de outra pessoa, trazia uma reportagem sobre a elite de São Paulo e sua preferência por realizar festas em Nova York. Na reportagem as pessoas alegam que em Nova York podem se vestir com os melhores sapatos e bolsas sem sentir medo de assaltos. Eu fico aqui só pensando...será que eles não percebem que essa violência e insegurança é fruto da desigualdade social e principalmente econômica em que nos encontramos? E que a causa dela é justamente a distribuição de renda, onde uns esbanjam em festas no exterior e outros não têm o que comer? Será que é tão difícil assim entender que não importa o que façam, um dia essa violência vai alcançá-los? Seja numa sinaleira, seja na saída de um clube caro, seja na porta de casa, um familiar vai levar um tiro, uma facada? E nesse momento, da morte de um integrante da elite, a mídia vai parar toda a programação pra noticiar o "triste fato", o sentimento dos familiares, a revolta de todo o país com um crime "tão bárbaro".
A violência, gerada pela desigualdade, é como um bumerangue. Ela volta. Hoje tu ficas com as fatias do bolo econômico e social de várias pessoas, compra roupas e sapatos caríssimos, leva os amigos pra festejar fora do país. Hoje, os que não recebem a fatia do bolo devida, que na verdade tu estás levando, choram de fome, de frio, por não ter um lugar pra morar, por não ter perspectiva. Hoje, eles sofrem na carne essa dor, que é uma violência aos seus direitos. Amanhã um deles dá um tiro no teu filho. Daí tu achas certo chamá-lo de "animal". Consegues com certeza que ele seja preso. Consegues inclusive, porque és amigo do delegado e do juiz, dar uma boa sova no desgraçado.

E depois tu choras. Porque mesmo com tudo que consegues fazer contra aquele "animal", "farofeiro", através do teu status, poder e dinheiro, o teu filho nunca mais vai voltar.

 

¹MAYORGA, Fernando Daniel de Oliveira; KHAN, Ahmad Saeed; MAYORGA, Ruben Dario e LIMA, Patrícia Verônica P. Sales.Capital social, capital físico e a vulnerabilidade do sertanejo: o caso das comunidades de Lustal e Sítio Lagoa no município de Taua, Ceará. Rev. Econ. Sociol. Rural [online]. 2004, vol.42, n.1, pp. 111-132. ISSN 0103-2003.

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