Hoje é dia de finados no Brasil. No México é dia dos mortos, uma das datas mais importantes do calendário. Algumas pessoas estão postando textos sobre a morte nas redes sociais. E eu desde a meia-noite de hoje estou pensando no pai.
Morte? O que é a morte? E qual o seu significado?
Sempre foi uma coisa muito horrorosa pra mim pensar na morte do pai. Por isso nunca pensei. Daí ela aconteceu e eu não vou dizer que sofri muito, não foi isso. Eu sofri muito quando terminei um namoro com alguém que eu gostava muito. Eu sofri muito quado a Bia tinha saudade do pai dela e ele não vinha vê-la. Eu sofri muito com todas as maldades que a minha mãe fez pra mim e pra Bia. Com a morte do pai foi mais. Foi uma injeção letal que imobilizou o meu ser. Uma sensação concreta de que tudo tinha acabado. Não adiantava mais nada. Era como se o mundo tivesse acabado pra mim, mas não. Uma sensação complicada de descrever. Eu sentia como se não adiantasse mais fazer nada, nem avisar as pessoas do ocorrido, eu sentia como "agora acabou" no sentido de que minha vida e todo seu sentido tinha acabado. A Bia não quis ir no teu enterro e eu nem falei nada, tão inerte eu estava.
Em outro sentido, "Agora acabou", foi o que me disse uma prima no enterro do pai. Ela, técnica de enfermagem, quis dizer que os meses todos de dor com ele no hospital haviam acabado, acabou o sofrimento, a preocupação, acabou a angústia. "Agora acabou, podemos seguir em frente". Eu sentia justamente o contrário. Pode ser que pra ela tenha acabado. Pra mim não acabou nada. Pra mim tudo continuou e muito pior porque agora ele não estava mais aqui e eu fiquei sem esperança. Perdeu o sentido acreditar que um dia eu poderia retribuí-lo com tudo de bom que ele me deu. Perdeu o sentido sonhar que um dia ele ia morar comigo. Perdeu o sentido acreditar que quando eu tivesse meu sítio ele iria morar conosco e seria muito feliz. Ele nunca quis morar com a gente. Ele nunca quis cortar o fino laço que o unia aos outros filhos, laço que só ele mantinha, que era só da parte dele. Ele nunca me viu pagando aluguel sem sentir uma dor no coração por ter trabalhado tanto para construir uma casa para todos os filhos e eu passar a vida toda tentando sair dela. Não era da sua casa que eu queria sair pai! Era da presença tóxica da mãe! Eu entendo todas as suas razões como pai e só o amo e o admiro mais ainda por todas as escolhas que fizeste, mas eu teria sido tão feliz se o senhor tivesse ido morar comigo e com a Bia! Tudo bem que a gente pagava aluguel, tudo bem que as coisas eram difíceis, mas a gente tava feliz! E não adianta reclamar, foi o senhor que me ensinou que o dinheiro não tem tanta importância assim. Mas eu entendo seus motivos. O senhor foi o melhor pai do mundo e só o foi porque não foi só o melhor pra mim, foi também para os meus irmãos. Mesmo sem reconhecimento, mesmo recebendo apenas agressões. O seu amor foi incondicional para nós três e isso, apesar de ter me deixado muito vulnerável, só me faz amá-lo e admirá-lo mais!
Viver a morte de alguém que dá sentido pra tua vida é ser condenada a continuar vivendo com a pessoa sem vê-la, sem tocá-la, sem ouvi-la, sem falar-lhe. Viver a morte de alguém que dá sentido pra tua vida é morrer também. Na verdade, somos nós que morremos. É um pedaço da gente que perdeu a graça e a vida. Eles não morrem. Eles continuam tão vivos como eram antes de seus corpos pararem de respirar. E isso não é simbólico. É real. Quem já perdeu alguém que amava muito sabe do que estou falando. O pai está em mim do mesmo jeito que ele sempre esteve até o dia 15/08/2007. As suas orientações e seu carinho continuam aqui do mesmo jeito. O seu modo de vida, tudo que herdei dele: o desejo de justiça social, o amor pelos animais, o sentimento de coletividade social, o desejo de mudar o mundo. O seu exemplo e as coisas que não consegui herdar: a calma, a pachorra, a tranquilidade, a capacidade de aguentar calado as injustiças contra si, acho que essas coisas foi o Dani que ficou.
E acho que essa mania que as pessoas têm de jogar fora as coisas da pessoa que morreu, esvaziar o quarto, doar as roupas, os objetos, acho que isso só faz doer mais. Eu só consigo levar a minha vida adiante com a morte do pai por causa da vida dele. Por causa da minha vida com ele. Tudo que era dele pra mim é muito precioso, é muito amado, é o registro de que ele esteve aqui comigo. O fato de ele morrer não faz ele deixar de ser meu pai. O fato de ele morrer não faz ele deixar de ser filho, irmão, amigo. Só quer dizer que o corpo dele não pulsa mais. Assim como se ele tivesse viajado pra Sibéria. A presença física dele não está, mas todo o resto continua. Eu continuo respondendo nas repartições públicas para a pergunta "Nome do pai?": Luiz Ventura da Silva. Ele vai ser meu pai até que eu morra, e depois que eu morrer ele vai continuar sendo o vô da Bia, e o bisavô dos filhos dela, e assim por diante. E eu não estou simbolizando nada, tudo que estou relatando é concreto, são ações, são fatos.
Se ele vai ser meu pai pro resto da vida, assim como todas as outras pessoas que falecem continuarão a ser quem são para os que a amam, por que essa palhaçada de jogar tudo fora? De tentar eximir a lembrança da pessoa? Gente, isso só dói mais! Porque eles não saem da nossa vida nunca! E que coisa mais boa isso! Que coisa mais maravilhosa o amor e o carinho, eles constroem vínculos que ficam, que permanecem, e o burocratismo do mundo em mantê-los na nossa carteira de identidade é só um presente a mais, um jeito pra nos orgulharmos!
Eu me babo toda quando preciso dizer o nome do meu pai!
Acho que é por isso que quase nunca vou ao cemitério. Porque eu falo e converso contigo sempre que preciso. Eu te mostro as coisas quando tenho vontade. Eu penso no que me aconselharia a fazer quando preciso decidir algo. Eu guardo as tuas roupas no guarda-roupa como tu me pediste uma vez: "Deixa aí a hora que o pai precisar tá aqui". E elas ali estão. O pouquinho de roupas que tinhas lá em casa. E tua escrivaninha, teu arquivo. A mesa que fizeste pra eu fazer meus artesanatos. O sofá de escritório. Tudo lá em casa. Todo teu esforço mobiliando minha casa, porque era pra isso que vivias e trabalhavas: para dar conforto aos filhos. Sem luxo, sem superficialidade. O necessário para uma vida digna e honesta. E talvez por isso que meu irmão tenha se assombrado quando eu disse que fazia dois anos que não ia ao teu túmulo. Porque eu te respeitei e te amei em vida. Eu não preciso ir ao teu túmulo para ser filha. Eu sempre fui. Eu não preciso ir lá para chorar de saudade. Não preciso ir lá pra lembrar de ti. Eu já acordo lembrando. Quando vou lá eu entro em convulsão de tanta dor, porque ali me remete ao dia que faleceste e o quanto isso foi dolorido. Ali naquela colina eu lembro do dia lindo que estava aquele quinze de agosto. Nós te enterramos ao por do sol, o horizonte estava todo vermelho, lindo, lindo pai! Foi assim o dia que faleceste. Um dia de uma beleza única, singela. O céu estava em festa. Concretamente. Literalmente.
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