domingo, 21 de fevereiro de 2010

Fazendo uma obturação


Falar de saudade é sempre dúbio, por um lado é bom desabafar, por outro dói lembrar. É impressionante o quanto pequenas situações fazem a gente lembrar e sentir saudade daqueles que não temos mais ao nosso lado. Não são os grandes momentos que nos fazem sofrer. Não. São os pequenos detalhes.

Ontem estava na cadeira do dentista com a boca arregaçada, naquela situação lastimável em que ficamos, ele perguntando "Está tudo bem?" e eu tentando desesperadamente responder: "ããguirrram". Será que os dentistas não sabem que quando eles esticam a nossa boca é impossível elaborarmos qualquer resposta, e nem um simples "aham"? Enfim, ele estava tentando ser agradável. Não era momento de eu tirar todos aqueles negócios que ele tinha enfiado na minha cavidade bucal e discursar sobre a (in) disponibilidade da fala em determinadas situações, ou sobre a angústia causada no ser humano que está impossibilitado de articular verbalmente seus pensamentos.

E ali, naquela cadeira, naquela situação tragicômica, eu chorei pelo meu pai. Segurei ao máximo para elas não rolarem pra fora, mas minhas lágrimas são teimosas e duas escaparam. Ele não viu, ou pelo menos não comentou nada. Que situação! Até agora, revendo isso, me sinto meio louca, meio fora de propósito. E olhando de fora, não deixa de ser...

Senti minha boca seca, com todas aquelas coisas. Imediatamente, como um instinto lembrei do pai no hospital. Ele não podia beber água, estávamos proibidos de lhe oferecer qualquer líquido. Ele já não nos compreendia e não falava. Implorava por água, passava a língua pelos lábios, eu sentia sua angústia e não podia fazer nada. A enfermeira nos deu a possibilidade de passar um pano úmido em sua boca. Mas era inverno, a água gelada o machucava e para fazer isso precisávamos segurá-lo porque ele não deixava. Como não nos entendia, não sabia o que íamos fazer. Sentia a água gelada e se encolhia todo. Então passei a fazer isso com chá morno. Ele ainda se contorcia, mas muito menos. Que momentos desesperados...ver alguém que se ama, alguém tão especial, sofrendo, passando sede, sem poder falar, sem poder entender, é doloroso. A única coisa que consola é saber que estamos fazendo o correto para ele ficar bem, é pensar que isso vai fazê-lo voltar pra casa. Daí talvez porque as pessoas acreditam. Naquele tempo eu também acreditava. Mais: eu tinha certeza. Certeza de que íamos ser felizes novamente, teríamos nosso canto, terias novamente uma casa tua. Hoje eu teria te dado toda a água do mundo. Hoje eu teria arrancado aquelas agulhas que exigiam a tua mão amarrada para não soltar. Teria te dado todas as coisas que não podias comer e adoravas, linguiça, "murcília", pão de casa com chimia, café preto bem forte, berinjela, churrasco, ambrosia, o meu arroz com galinha, suco de limão colhido do pé ali nos fundos, laranja descascada com tampinha como fazia pra mim quando eu era pequena. Faria um chimarrão e sentaríamos na sacada pra tomar, comendo bolacha de natal. Te daria tudo isso pai, porque nada adiantou te deixar sem água, de nada adiantou amarrar teu braço para não soltar a agulha da veia.

E pensando nisso tudo, eu tive a certeza de que nada vale acreditar. As coisas ocorrem e não dependem de nossa atitude nem de nossa fé. Elas simplesmente acontecem.

2 comentários:

  1. Texto maravilhoso. Simples assim. Bjs.

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  2. Anexo aqui duas frases com que me deparei nas últimas 12 horas, em situações completamente distintas, que encontram também este destino em seu sentido:
    "Navegar é preciso. Viver não é preciso." Fernando Pessoa, verbalizada pelo meu profe mui amado Daniel Conte
    "O homem planeja. Deus ri." Do msn do gentil pelotense, Deco.

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