domingo, 24 de maio de 2015

O lixo e seus encontros

Tenho orgulho em dizer que adoro um lixo.
Não tenho a menor vergonha nessa minha cara de dizer isso.
Lembro de um episódio que me bordeou, quando fiz VER SUS em Novo Hamburgo a TO do Geração de Renda, após ouvir minhas frases desavergonhadas sobre o fato de meu apartamento em Pelotas ser todo do lixo, tudo reciclado e reaproveitado, me olhou e disse: "TO adora um lixo, né Cíntia?". Nossa, me senti amada! Então somos mais de uma? Me senti parte. Nunca esqueci e carrego esse comentário sempre comigo, afinal, somos um grupo, tem outras como eu por aí, posso degustar o olhar de estranhamento de todos com mais empáfia ainda.
Hoje, um dia lindo de sol na minha cidade, fiz uma lista de tarefas e saí pedalando a cumpri-las. Acontece que hoje eu não tinha horário pra chegar em nenhum lugar, e havia vários lixos pelo caminho. Assim fui, achei umas latas de tinta ali, outras aqui e parei no santuário de todas nós - na verdade só meu, que as outras andam por aí espalhadas nesse mundão de meu deus e têm seus próprios santuários, eu acho - a calçada de trás do mercado, duas quadras da minha casa, atrás também do colégio que estudei.
Ali meus olhos não sabiam pra onde olhar: pencas enormes de orquídeas ali abandonadas, gavetas, portas de armário, um pé de limão abandonado e esquartejado, já definhando, mas ainda com limõezinhos lindos e maduros em seus galhos, troncos de árvore cortados em pedaços, enfim, um mundo inteiro de possibilidades, e elas giravam dançando em torno de mim.
Fiz muitas viagens pra levar tudo que eu queria no triciclo. E nesse ir e vir alguns personagens também ocuparam esse cenário. Primeiro parou um carro sedan com um casal, ela me olhou, sorriu, me viu carregando o triciclo com um tronco de uns 25 kg e meio como que se desculpando me explicou que "também queria um tronco desses". Eu incentivei, mostrei os vários que havia, falei das orquídeas abandonadas que eu já havia levado pra casa, ofereci uma penca explicando que eu voltaria para buscar as gavetas e ela aceitou. Deixei o tronco em casa - não foi assim simples, quase morri pra erguer e pra tirar o negócio do triciclo, me arranhei toda, mas sigamos senão eu não termino nunca - peguei uma penca de orquídeas e voltei. Ela se impressionou com o tamanho, "não precisava tanto", eu disse que tinha mais quatro pencas iguais, que ela levasse e desse para outras pessoas também. Foi embora feliz.
Fiquei carregando as gavetas que eu planejava usar pra fazer caminhas pra gurizada aqui de casa, também separei uns compensados, alguns pedaços que tinham rolamentos que eu preciso fazer um suporte pro meu teclado, e nessa função para outro carro: "Quer ajuda pra levar as coisas?". Um guri tri bonitinho, parecia também bem querido. "Não precisa, obrigada", sorrindo respondi, mas sem interromper o trabalho. "Não vai caber tudo, eu te ajudo", ele insistiu. Fiz meu melhor sorriso e respondi agradecida que realmente não precisava, se fosse necessário eu fazia duas viagens. Ele pareceu querer achar mais alguma coisa pra dizer, ainda ficou uns instantes parado ali me olhando de dentro do carro, mas eu seguia compenetrada e ele teve de dar o braço a torcer. Depois pensando em nosso diálogo fiquei imaginando que certo, qualquer amiga pra quem eu vá contar vai me chamar de boba e etc. Mas ninguém vai prestar atenção na palavra "guri" que eu usei pra descrevê-lo. Um guri de uns 27 anos. Querido, bonitinho, mas guri. E também fiquei refletindo, e se fosse um homem? Eu ia me sujeitar a aceitar a ajuda só pra flertar? Não, né, eu ia querer que ele entendesse que eu era capaz de dar conta sozinha, e me abordasse de outra forma, podia fazer de conta que tava catando no lixo também, nossa, ia me ganhar certo! Risos... é, eu sei, eu não sou desse mundo. Mas tem mais como eu, como já disse acima.
Saindo dali com as gavetas, encontro o Duda chegando. O Duda é meu vizinho, e trabalha com lixo reciclado, coleta, separa e vende. Ele gosta muito de mim - eu sei, não mereço tanto, não entendo porquê, mas adoro que assim seja, deixa ele! - sempre que nos encontramos ele para pra conversarmos, me conta um pouco da vida, pergunta da minha e sempre me recebe com um sorrisão: "Tu também tá catando, Cíntia?", desceu do triciclo dele, veio ao meu encontro, apertou minha mão. Expliquei que ia fazer umas caminhas pras minhas cachorras e ele solícito como sempre: "Não, essas estão todas velhas - na verdade estavam boas, mas acho que ele queria me agradar, fazer algo por mim - deixa aí, eu tenho umas gavetas lá em casa e te dou elas". Eu agradeci, disse que precisava mesmo ir lá pegar umas mudinhas e daí já pegava as gavetas, mas eu levava também pra retirar os rolamentos. Combinamos que no outro dia eu ia buscar tudo, as mudinhas e as gavetas.
Voltei pra casa, segui nas tarefas e saí pra buscar outros troncos pra acomodar todas as orquídeas e umas caixas grandes de papelão pra forrar o "quarto" das filhotes. Estava muito escuro, já havia chegado a noite, não consegui encontrar os troncos, acordei comigo mesma e com a Trekking que vinha junto que voltaria no dia seguinte e assim pegamos só as caixas - que inclusive achamos mais pontos delas pelo caminho.
Voltando pra casa alguém chamava meu nome no portão. Era a Maria, esposa do Duda, com uma gaveta na mão: "O Duda mandou te trazer, tem outra lá igual". Agradeci muito o cuidado, "não precisava vir me trazer eu pegava amanhã", conversamos um pouco, ela me contou dos seus cachorrinhos, estão com sete, uma deu cria nessa semana, combinamos que eu iria lá no outro dia pra pegar as mudinhas, nos despedimos e ela foi pra casa.
E eu fiquei assim, pensando nesses encontros que o lixo hoje me trouxe, de um jeito debochado "Ah, se as gurias soubessem que o lixo funciona mais que o Abbey!", de um jeito agradecido pela oportunidade de tê-los na minha vida e estar um pouquinho na vida deles, e de um jeito forte que me impulsionou a vir aqui compartilhar com vocês.
Que o correrio dos dias não me impeça de, vez em quando, ter encontros no lixo.

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